terça-feira, 25 de dezembro de 2012

SÉRIE FUMAÇA JÁ - AS MANOBRAS

As manobras
Escrito por Ruy Flemming    

O conjunto de manobras apresentadas por uma esquadrilha de demonstração determina sua identidade. 

É algo como explicar a personalidade do grupo interpretando suas cambalhotas. Com diferenças sutis na intensidade de cada palavra, adjetivos como audácia, arrojo, técnica e vários outros, estarão sempre presentes. São inúmeras as equipes de demonstração aérea espalhadas pelo mundo e cada uma delas guarda uma história rica, onde a criatividade é palavra de ordem para encantar o público sempre presente às demonstrações. Os traços da personalidade de cada esquadrilha vão ser desenhados pelo que a aeronave permite fazer lá em cima e até onde o treinamento e a mente criativa dos seus pilotos vão explorar toda a capacidade operacional do envelope de voo. 

Uma das principais características da Esquadrilha da Fumaça é o voo de dorso. Algumas manobras só a nossa equipe faz. O voo de dorso está inclusive registrado no Guiness Book. 
Não existe um ranking entre as esquadrilhas que atuam no mundo. Seria impossível comparar o desempenho de grupos que voam jatos super e sub sônicos, turbo hélices e aviões movidos a motores convencionais. Seja qual for o critério adotado, jamais seria capaz de estabelecer uma classificação do primeiro ao último, sem cometer injustiças. 

O outro motivo pelo qual não existe esse ranking resume-se ao fato de que não interessa a ninguém. Nas ocasiões onde mais de um grupo de encontram, o clima nunca é de competição. A festa fica ainda maior e mais vibrante.

As manobras que a Esquadrilha da Fumaça realiza em suas demonstrações são fruto da experiência acumulada ao longo dos anos e sugestões dos próprios pilotos. A Esquadrilha da Fumaça treina exaustivamente para fazer com que as manobras sejam feitas sempre com a máxima segurança. Uma vez garantido o quesito "segurança", vem a beleza plástica que vai encantar o público. Uma manobra espetacular que não seja segura para o público, jamais fará parte da demonstração da Esquadrilha da Fumaça.

O cruzamento impressiona demais o público. Os aviões, vindos de diferentes direções passam aparentemente no mesmo ponto no espaço.

 27/03/2012 - FIDAE 2012 - Força Aérea Brasileira Esquadrilha da Fumaça Embraer EMB-312 Tucano (T-27)

Não existe nenhuma outra manobra onde o grau de confiança tenha que ser tão elevado.

O líder inicia a manobra sem fumaça, com os seis aviões em formatura Delta, acelera para mais de 450 quilômetros por hora em voo picado.

 27/03/2012 - FIDAE 2012 - Força Aérea Brasileira Esquadrilha da Fumaça Embraer EMB-312 Tucano (T-27)

 27/03/2012 - FIDAE 2012 - Força Aérea Brasileira Esquadrilha da Fumaça Embraer EMB-312 Tucano (T-27)

 27/03/2012 - FIDAE 2012 - Força Aérea Brasileira Esquadrilha da Fumaça Embraer EMB-312 Tucano (T-27)

 27/03/2012 - FIDAE 2012 - Força Aérea Brasileira Esquadrilha da Fumaça Embraer EMB-312 Tucano (T-27)

A essa velocidade, os comandos ficam ainda mais sensíveis, qualquer movimento mais amplo, fará o Tucano mexer na posição mais do que o previsto. A tensão da alta velocidade só é quebrada pela voz tranquila do líder, que pelo rádio informa que vai começar a puxada do looping. Nem precisaria avisar, mesmo para o piloto mais novo, a seqüência foi tantas vezes treinada que, como se dizia na Fumaça, das duas uma, ou o cara aprende, ou acostuma. Mas já que avisa, os cinco alas iniciam os toques de cabrada no compensador do profundor, o que vai facilitar a puxada de cerca de três G, necessária para o líder fazer o looping, que é aquele círculo grande no céu.

O compensador dos Tucano da Esquadrilha da Fumaça é um dos três itens que os diferenciavam dos normais de série que voam em várias Forças Aéreas espalhadas pelo mundo. Por causa das variações abruptas do voo normal para o voo de cabeça para baixo, o compensador tem que atuar muito mais rápido que nos modelos de série. 

Os outros dois itens são: o sistema de fumaça e a pintura. Só. 

Dentro da formação compacta, esses pequenos toques no compensador, fazem os aviões denunciarem a preocupação dos pilotos em prepararem-se para a puxada. Olhando de relance o velocímetro, o piloto vê que o ponteiro está quase invadindo a área amarela, ou seja, está quase tocando os 250 nós - mais de 450 km/h. Não existe a necessidade de olhar para o instrumento para checar a velocidade. Primeiro que esse detalhe não importa. 

É responsabilidade do líder da formação operar dentro dos limites da máquina, depois, o piloto "sente" essa velocidade nas reações do avião, que fica muito mais arisco, o piloto trabalha a manete de potência lá na frente, o motor parece que está esgoelando e ouve-se o zunido do ar que vai ficando mais agudo na medida em que o Tucano invade a atmosfera com velocidade cada vez maior.

Seguindo o líder, toda a formação sobe num conjunto harmônico.

A regra para o uso do motor é bem simples: na descida, o avião do líder embala mais rápido que os demais, por isso todos têm que trabalhar mais "quente" de motor. Na subida, o avião do líder desacelera mais rápido que os alas, então todos os outros trabalham com o motor mais atrás. Nas curvas, a mesma coisa, quem está voando pelo raio de dentro da curva usa menos potência para manter a posição. Por fora, mais potência. A partir daí, o voo ficou fácil, o próximo passo é manter o avião coordenado, usando os pedais convenientemente. 

A regra para isso também não é complicada: nas altas velocidades, usa-se pedal direito, nas baixas, pedal esquerdo. Para evitar que grandes amplitudes de pedal fossem usadas, o que dificultaria em muito a pilotagem, a Embraer instalou o motor ligeiramente desalinhado para a direita. É claro que não dá para ficar o tempo todo olhando o indicador de curvas e derrapagem. O piloto acaba "sentindo" com seu próprio corpo, se o avião está coordenado ou não. 

A vantagem de um piloto como os da Fumaça, que aprendem a operar nos limites e respeitar cada um desses limites, é que com o tempo eles acabam "vestindo" a máquina. É algo como o Sganzerla disse numa matéria que acabou indo ao ar num programa Globo Repórter. Ele falou algo como sentir as asas do Tucano como um prolongamento do seu próprio corpo. Como se toda a fuselagem do Tucano fosse uma estrutura que pertencesse ao seu corpo, tamanha é a intimidade com a máquina.

O líder, obviamente não pode voar com o motor a plena potência, caso contrário o vôo na ala seria impossível. Ele usa uma margem de folga suficiente para que todos trabalhem o motor e tenham condições de permanecer na posição. Em algumas situações é o próprio líder quem trabalha com a potência para não comprometer a manobra. 

O público, lá embaixo, nunca percebe isso. Simplesmente fica maravilhado com o balé sincronizado.

Nessa manobra específica - desfolhado com cruzamento - o líder não usa esse artifício. Apesar de estarem os seis juntos, o líder mantém o motor parado numa posição para que todos tenham condições de acompanhar. Uns oito a dez por cento de folga é mais do que o suficiente para manter a posição cravada. Com o início da puxada, a visão periférica do piloto percebe o mundo começar a virar de cabeça para baixo, se tomarmos o avião por referência num looping, o planeta faz um giro completo em torno do avião. A sensação de ver o mundo girando num looping é algo que vale a pena ser vivido. Mais marcante ainda é a sensação de sentir o corpo pesar 3 ou 4 vezes mais, em função do aumento da carga G.

No alto dos meus cerca de 100 quilos, meu corpo tinha que suportar um peso de trezentos ou quatrocentos quilos por alguns segundos. O suficiente para a máscara que não estivesse bem ajustada escorregar no rosto sempre suado. O simples movimento do braço nessa condição de G, requer um esforço muito grande. Chegando no topo do looping, o piloto passa a trocar o pedal para manter o voo coordenado, começa a "roubar" na posição, ou seja, tem que levar o avião um pouco mais para frente para garantir que a posição seja mantida quando o líder começar a descer. O mundo, no topo do looping está de cabeça para baixo. Para que nós pudéssemos olhar para o chão, teríamos que levantar a cabeça e procurá-lo numa posição onde normalmente estaria o céu. 

Ninguém perde tempo com essas divagações a cerca de onde está o céu. A consciência situacional, estimulada pela visão periférica, faz isso o tempo todo. Nessa manobra específica, o desfolhado com cruzamento, a Esquadrilha não completa o looping. Quando os aviões estiverem apontando diretamente para um ponto que o líder toma por referência no chão, numa posição a noventa graus, o líder fala pelo rádio:

- Desfolhado, com fumaça, já! Cem por cento.

Todos ligam o dispositivo de fumaça dos seus aviões e aceleram os 750 cavalos dos motores dos Tucano, saindo cada um para um lado numa distância angular entre os aviões de 60 graus. Cada piloto leva sua manete de potência toda à frente. Vai até sentir o batente com mão esquerda. É possível ouvir o som dos metais se encostando, indicando que não há mais curso disponível. Para trás fica somente o rastro de fumaça no céu. 

O desenho lembra a Catedral de Brasília, projetada pelo arquiteto Oscar Niemayer.

O público lá embaixo fica maravilhado incentivado pela voz do locutor da Esquadrilha da Fumaça. Palmas e as expressões de êxtase assumem a assinatura sonora do lugar enquanto os Tucanos se afastam, cada um para o seu lado.

No alto os pilotos não se dão conta dessas manifestações. A concentração é total. Na parte mais baixa da manobra o líder comanda "fumaça fora, já!" e inicia a recuperação, puxando mais um punhado de G, ao mesmo tempo em que ele informa a velocidade máxima atingida.

Nariz em cima, todos, cada um num canto diferente do céu, buscam um ângulo de subida de 45 graus e agora, os pilotos estão atentos ao que o líder anuncia pelo rádio. Na verdade, nesse momento, ele não faz nada além de narrar o que está fazendo ele próprio com seu avião.

- Cem nós, giro já e puxada, com fumaça, já! Noventa por cento.

Todos os outros aviões farão a mesma coisa. Cada um vai fazer as correções necessárias, levando em consideração diversos fatores, como: direção e velocidade do vento, velocidade máxima atingida na recuperação, altura e velocidade atingidas, enfim fatores que o piloto julgar pertinentes. Finalmente o cruzamento. No céu estão seis aviões a quase quatrocentos quilômetros por hora. Cada um vindo de uma direção diferente. Todos voando para o mesmo ponto.

Essa manobra é a maior prova de confiança mútua.

Cada piloto olha somente para um outro piloto que é sua referência. Cada piloto tem que confiar que os outros cinco estão fazendo exatamente como foi treinado. Cada uma tem que cumprir estritamente seu papel. Mais do que comprometer a beleza da manobra, um erro ou uma desatenção pode determinar sérias conseqüências. O locutor, em tom jocoso, avisava para o público não tentar fazer isso em casa!

Como dizia o Crispim, num voo como esses, não dá para pensar em outra coisa, que não o conjunto de manobras. Preocupações como conta bancária, problemas em casa, compromissos, não entram na nacele. Têm que ficar do lado de fora. 

Nós tínhamos nossos anjos da guarda. O apelido de Anjos da Guarda foi dado com muita propriedade à equipe de mecânicos que cuidava dos Tucanos. Eram os mecânicos que cuidavam dos nossos aviões com atenção e carinho excepcionais.

Tudo tinha que funcionar perfeitamente e cada um deles sabia exatamente de sua responsabilidade. Uma vez eu ouvi de um espectador que a gente não voava com os nossos anjos da guarda. Ele estava se referindo aos anjos que nos protegem, não aos mecânicos. Justificou-se dizendo que eles não teriam coragem de participar do vôo e ficavam no chão torcendo para que tudo desse absolutamente certo. Mentira. Claro que eles estavam sempre com a gente. Procurávamos minimizar seu trabalho treinando e conhecendo a máquina, mas eles estavam, certamente, sempre lá.

O número dois passa logo abaixo do líder. O três, por baixo do dois. O quatro ao lado do líder. O cinco ao lado do dois e o seis ao lado do três. 

Tudo pertinho, sem bater. Simples assim.

Ruy Flemming

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